terça-feira, 6 de maio de 2008

Reconhecimento do amor (Carlos Drummond de Andrade)

Amiga, como são desnorteantes os caminhos da amizade. Apareceste para ser o ombro suaveonde se reclina a inquietação do forte( ou que forte se pensava ingenuamente ).Trazias nos olhos pensativos a bruma da renúncia:não querias a vida plena,tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,não pedias nada,não reclamavas teu quinhão de luz.E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.Descansei em ti meu feixe de desencontrose de encontros funestos.Queria talvez - sem o perceber, juro –sadicamente massacrar-tesob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíamdesde a hora do nascimento,senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,ou mais longe, desde aquele momento intemporalem que os seres são apenas hipóteses não formuladasno caos universal.Como nos enganamos fugindo ao amor!Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentarsua espada coruscante, seu formidávelpoder de penetrar o sangue e nele imprimiruma orquídea de fogo e lágrimas.Entretanto, ele chegou de manso e me envolveuEm doçura e celestes amavios.Não queimava, não siderava; sorria,Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso,Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amorQue trazia para mim e que teus dedos confirmavamAo se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,quando – por esperteza do amor – senti que éramos um só.Amiga, amada, amada amiga, assim o amordissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundoCom olhar pervagante e larga ciência das coisas.Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,e a pura essência em que nos transmutamos dispensaalegorias, circunstâncias, referências temporais,imaginações oníricas,o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,todas as imposturas da razão e da experiência,para existir em si e por si,à revelia de corpos amantes,pois já nem somos nós, somos o número perfeito:UM.Levou tempo, eu sei, para que o EU renunciasseà vacuidade de persistir, fixo e solar,e se confessasse jubilosamente vencido,até respirar o júbilo maior da integração.Agora, amada minha para sempre,nem olhar temos de ver nem ouvidos de captara melodia, a paisagem, a transparência da vida,perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.

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